terça-feira, agosto 15, 2006

Os TRÊS EMPECILHOS do HOMEM são a MORTE a CULPA e a LEI ?

Um grande texto de um grande filosofo Portugues. (J. Lamas)



O homem pensa e transmite pensamentos. E é com pensamentos que os transmite. Já ninguém estranha esta característica: é com naturalidade que entre nós dizemos “é” ou “não é” ou “é e/ou não”. E é incluindo e excluindo pensamentos uns nos outros que nós dizemos “sei” ou “não sei” ou “talvez saiba se”.

Sempre que é emitido um pensamento quem o emite e quem o recebe refere-o a um objecto transcendental, isto é, um objecto que se manifesta na mente “como se existisse” (noção de transcendental), mas que de imediato nada garante que possa mesmo existir fora da mente. Aliás, é a esta referência do pensamento a um objecto transcendental que nós chamamos conceito. Mas o objecto do conceito é tão só “como se existisse” ou “existe mesmo”?

Responder a esta pergunta é o problema essencial do conhecimento: a realidade reduz-se ou não se reduz ao que dela pensamos? Um tal Sr. Descartes, já lá vão mais de três séculos e meio, ensinou-nos a duvidar com método e, eliminando dúvida após dúvida, concluiu, sem dúvida (!…), “penso, logo existo”. Mas há quem pense que Descartes se precipitou. Deveria ter duvidado um pouco mais e concluir: “penso, logo existem pensamentos”. Concluir “penso, logo existo como faculdade de pensar” é, na expressão popular de hoje, “chover no molhado”.

Mas Descartes precipitou-se… com emoção – na estratégia das decisões racionais, as emoções também contam, revelou o português António Damásio – e como não duvidava nem do seu corpo, nem do seu “cogito”, o primeiro comoventemente a ocupar espaço desde o ventre da mãe e o segundo, dinamicamente a estender o tempo da sua compreensão intelectual, entendeu dar razão ou fundamento explicativo do corpo e do espírito, de cuja evidência lhe era impossível duvidar, propondo dois mínimos separados um do outro, a “res extensa” e a “res cogita” . Erro de Descartes ou Desvio de Descartes?

O homem tem uma ânsia enorme de explicar e de se explicar. Sempre o fez: o homem é um animal “perguntador”. Todas as perguntas são válidas e indiferentes à verdade e ao erro. Mas as respostas aferem-se em relação a um critério e em relação a esse critério ou são verdadeiras ou são falsas. As respostas diferem entre si, não pelo objecto (sempre o mesmo: as múltiplas perguntas sobre o mundo, o universo e a vida), mas pelo fundamento da explicação: a experiência empírica explica, os mitos explicam, as religiões explicam, as ciências explicam, a filosofia explica – em todo o tempo e ao mesmo tempo ad eternum.

A fundamentação da resposta é que varia: as repetidas experiências vividas do quotidiano, as narrações míticas repetidas de geração em geração, os apoios cegos e/ou críticos das crenças aceites como reveladas ou não, as hipóteses racionais confirmadas ou desmentidas pelas experiências particulares controladas e verificáveis, as sínteses racionais e gerais e totalizantes da arquitectónica do pensamento.

A história da cultura é no fundo a história destas respostas e não é difícil encontrar pontos de secância entre as várias explicações, assistindo-se até na contemporaneidade ao aparecimento de sincretismos explicativos que renovam e valorizam os contributos de saberes ancestrais, reafirmando a necessidade de uma “meta ciência” que assuma uma atitude crítica do pensar em face do conjunto do saber.

O termo filosofia banalizou-se: chegou ao futebol (a filosofia do jogo…), chegou aos bares (o gajo com uns copos é um filósofo…), e tem cotação na bolsa (a filosofia das empresas…). Tudo bem: não faltam os debates de ideias. Mas uma coisa é a "ideosofia" e outra a filosofia. Filosofar, aqui e agora, pode dispensar a explicitação expressa de referir permanentemente a adequação dos conceitos aos objectos concebidos, mas não dispensa uma tomada de posição metodológica sobre o mínimo de pressupostos subjacentes ao máximo de explicações que a arquitectónica do pensamento entende alcançar com coerência dentro de um processo de fundamentação racional dos juízos.

É velha a querela do estatuto lógico da singularidade. O que é a singularidade? Não se define, descreve-se. É irrepetível: é capaz de haver neste momento milhares de pessoas que, como eu, escrevem com processadores de texto instalados em computadores: cada processador, cada computador, cada tecla, cada dedo, cada gesto, cada emoção, cada frenesim do espírito, cada pessoa, cada história a sua história – a singularidade é no mundo da ideosfera um conjunto transfinito de notas caracterizadoras, cuja dialéctica impõe à razão a objectiva transcendência do real.

Sou dos que pensam que só as singularidades são reais e que a realidade é indivisa e discreta, distinta, independente, separada. Transcende, portanto, o pensamento, quer dizer, é mais do que aquilo que eu penso dela. Aliás, quem duvida que o mundo, o universo e a vida já cá estavam antes de haver o homem racional? É a analítica e a dialéctica dos pensamentos pensados pelo pensar independentemente do sujeito que os pensa e dos objectos a que se reportam, (Lógica), a disciplina fundante da arquitectónica do saber.

Se a filosofia não servir para arquitectar um sistema encadeado de razões que permita ao homem abordar as perguntas radicais que formula – o que é o conhecimento (Gnosiologia), que “coisa” é essa que ele diz conhecer (Ontologia), quem é ele, o homem, esse tantas vezes desconhecido de si mesmo que afirma conhecer (Psicologia, disciplina filosófica ), que esfera objectiva de valores prossegue e propõe (Axiologia), que quadro de comportamentos prescreve e aceita para conviver em sociedade (Ética), enfim, que "eus" são esses que se desamarram do cérebro e como se arrumam na memória colectiva da esperança (Estética) – se não servir para justificar a fé, racionalizar a crença, reajustar a tolerância convivencional, e apoiar a fruição do belo, então a filosofia não passará de uma esgrima entre suspeições de cépticos e a vida uma nauseabunda manipulação dos saberes e dos poderes impostos.

O realista sabe que a realidade transcende o pensamento e, consequentemente, não ignora que há e haverá sempre o desconhecido a “pedir” ao pensamento que o desvenda. Mas não embarca no cepticismo metódico dos idealistas: aborda o mistério de hoje com o saber crítico de ontem. Se alguma ideia há de progresso em filosofia, ela tem a ver com as sucessivas integrações e superações dos conhecimentos e não me parece avisado dizer, por exemplo, que o pensamento de Kant seja melhor que o de Aristóteles. E muito menos avisado me parece dizer que um esteja mais próximo da verdade que o outro: apenas o mais recente integra e supera as aporias do mais antigo. Importa saber se as supera e integra com coerência sistemática.

E que melhor sinal haverá da coerência racional senão a de verificar a prioridade da vida?

Considero-me um realista no exacto sentido atrás exposto. Mas há quem pense o contrário: os idealistas reduzem a realidade ao que dela se pensa… Os realistas são transcendentalistas, os idealistas são imanentistas. Eu sou transcendentalista. E também não confundo realista com materialista, nem idealista com espiritualista. O materialismo e o espiritualismo respondem a outro problema do acto de conhecer, qual seja o de saber a natureza do objecto conhecido: material ou espiritual?

Nunca antecipei Deus para entender o mundo e a vida, mas pensamento, mundo e vida conduziram-me à porta do mistério. Lá porque a razão o não domina, não tem razão em eliminá-lo. Os imanentistas, liberta a razão de ter de se confrontar com o real que a transcende, elegem geralmente um qualquer saber particular e arvoram-no em disciplina fundamental da sua particular sistemática filosófica. Há mesmo “modas” nisto das explicações. E há a ditadura das ideias na moda…

A vida tem prioridade sobre o pensamento. É o bom senso que o diz, a fenomenologia que o relata e a razão que o sanciona. A razão é para pensar a vida, mas não foi a razão que ma deu. Diz-me a razão que a morte não afecta a vida. A vida continua e já cá andava quando chegou ao meu conhecimento. Os outros não são o mesmo que eu, mas eu deles e eles de mim, todos esperamos a dádiva da justiça. E descobrimos entre nós a necessidade do amor, o usufruto da criação sem lei. E é porque não amamos que penosamente nos agarramos às virtudes e procuramos na história a objectivação dos valores. O homem não é a medida de todas as coisas: - não é de certeza a medida das coisas que já existiam antes dele.

Estas ideias consolam-me o espírito, mas não evitam a inquietação do viver. Descobri que cheguei perfeitamente ao entendimento do bem que devo fazer e à verificação de fazer o mal que não queria. E vejo que isso sucede com os demais. Evito, no entanto, ser manipulador de culpas. Defendo-me de quem queira manipular as minhas. É nesta dialéctica comportamental que eu insiro o perdão: perdoar pressupõe a coragem de não alterar as circunstâncias que levou o outro a ofender sem querer – consiste tão só em libertá-lo da culpa. Libertai-me da minha se vos ofendo.

Mas há quem ofenda por querer?

Se assim é, tratar-se-á de uma ofensa do espírito que nem o espírito mais santo pode perdoar.