quarta-feira, agosto 24, 2005

Meus caros No meio de tanto taoismo. Zen etc, achei que seria boa ideia meter aqui um texto sobre um olhar para o Oriente de 4 pensadores portugueses.


Os caminhos do oriente no pensamento português contemporâneo
- entre José Marinho, Antero de Quental, Sampaio Bruno e Fernando Pessoa.


Não obstante ser um país do Ocidente, do extremo-Ocidente, não obstante ser o país mais ocidental da Europa, Portugal nunca perdeu de vista o Oriente. Ele foi sempre, nas suas navegações, nas suas viagens, através de todos os ventos, para além de todos os desvios, o seu, o nosso Norte, o seu, o nosso Horizonte.
Dissemos "não obstante" quando, porventura, deveríamos ter dito, ter escrito, "por isso mesmo", "precisamente por isso". Pois que, porventura, é precisamente pelo facto de Portugal ser um país do Ocidente, do extremo-Ocidente, o país mais ocidental da Europa, que ele nunca perdeu de vista o Oriente. Tal como o Homem ama a Mulher precisamente porque ela é o seu Outro, assim também nós amamos o Oriente precisamente porque ele é o nosso Outro…
Como aqui veremos, é precisamente assim, como o nosso Outro – do nosso ser, do nosso próprio pensar –, que alguns dos nossos filósofos contemporâneos olham para o Oriente. Tal o que, de uma forma mais detida, veremos a respeito do pensamento de José Marinho, e, de passagem, a respeito do pensamento de Antero de Quental, de Sampaio Bruno e de Fernando Pessoa.
Antes disso, importa, contudo, esclarecer desde já o seguinte: essa viagem que esses nossos filósofos encetam rumo ao Oriente não é uma viagem de regresso – nem de regresso à origem, nem, muito menos, de regresso ao passado. Muito pelo contrário. E isto, muito simplesmente, porque esse Oriente que eles visam não é o Oriente do nosso passado, o Oriente de que todos nós partimos na aurora do tempo, da história, mas o Oriente do nosso próprio futuro, precisamente esse Outro que importa ser, precisamente esse Outro que importa pensar.
Tal, desde logo, o que já de seguida veremos a respeito do pensamento de José Marinho, da sua própria viagem…
Para José Marinho, com efeito, o Oriente não simboliza, de modo algum, o tempo passado, mas, ao invés, o tempo, "o fluxo de tempo", que "não chegou a ser", que ainda "não chegou a ser", qual "aurora de um dia ainda impossível". Tal o que ele próprio expressamente nos diz – nas suas palavras: "Nós empregamos Oriente no sentido real e simbólico: como fluxo de tempo que não chegou a ser, como semente que não germinou, como aurora de um dia ainda impossível. Oriente é, para nós, a autêntica pré-história, a sub-história, o Paraíso Perdido.".
É certo – replicarão os mais conhecedores da obra marinhiana – que José Marinho nos fala de uma "tradição mais antiga", "mais remota", da qual, como chegou mesmo a escrever, "estão mais perto os indus e os orientais".É certo – replicar-se-á ainda – que José Marinho chegou mesmo a referir-se ao "saber do Oriente", ao "pretérito saber do Oriente".Simplesmente, replicaremos agora nós, José Marinho em momento algum pretendeu tornar-se um mero porta-voz desse dito "saber do Oriente". Muito pelo contrário. O "saber do Oriente" a que ele reiteradamente se refere, enquanto "saber outro" – ou, mais precisamente, enquanto "saber do Outro" –, é um saber que ele próprio descobre ao longo da sua própria viagem…
É aliás por isso que esse saber é fiel a essa "mais remota tradição", não fosse muito mais fiel à tradição aquele que a reinventa, assim a renovando, do que aquele que apenas a repete, assim a petrificando – ainda nas palavras do próprio José Marinho: "Quando referimos o significado e valor da tradição, entendemos, como é evidente, uma tradição viva: não pode esta transmitir ideias feitas, conceitos definitivos, razões indeclináveis. A tradição transmite, sim, a virtualidade incessantemente aberta de conferir o que foi aceite como verdade, com os renovados modos de apreender a mesma verdade, e o labor que requer compreendê-la e explicitá-la.".
Para nós, ocidentais, o Oriente só se pode aliás descobrir dessa forma: através de uma viagem, não através de uma simples "conversão". Através de uma simples "conversão" nada, aliás, descobriremos… Só, ao invés, através de uma viagem, de um caminho percorrido por nós próprios, passo a passo, poderemos, em última instância, aceder a esse Oriente de que nos fala José Marinho. Tanto mais porque esse Oriente não se encontra nas nossas costas mas, inversamente, no limite, no extremo limite, do nosso horizonte, do horizonte da ocidentalidade…É a Ocidente, no extremo-Ocidente, não o esqueçamos, que o Sol se põe. Ora, esse Oriente aqui em causa está precisamente aí: para além da linha do Horizonte, para além da linha onde o Sol se põe e a ave de Minerva levanta o seu sófico voo.
Não fosse, precisamente, quando a luz do Sol se oculta que a luz do próprio Espírito se desvela…
Daí, desde logo, todo o simbólico alcance da caracterização que José Marinho faz do nosso povo – enquanto "povo do crepúsculo"–, do nosso próprio país – enquanto "país do sol poente", "do sol posto", ou seja, diremos agora nós, enquanto o país que, precisamente por ser o mais ocidental, o mais extremo-ocidental, é o que mais próximo está desse Oriente que só se desvela quando a luz do Sol se oculta… –, na esteira, aliás, da caracterização que havia já sido feita pelo seu "mestre" Teixeira de Pascoaes. Daí, nomeadamente, a sua imagem da Ibéria como o "túmulo do Sol" contraposta à imagem da Grécia como o seu "berço", daí ainda a sua afirmação de que "o génio ibérico foi sempre anti-helenista, duma originalidade selvática aprofundada pelas sombras do Crepúsculo".
Ainda na esteira de Pascoaes, não deixou igualmente Marinho de contrapor a nossa mundividência à mundividência helénica. Daí, nomeadamente, o ter dito, a respeito de Sampaio Bruno, que "não se liga à meditação do nosso estranho pensador aos raios do claro Apolo, à gloriosa e triunfante verdade de Zeus", mas à "luz que emerge da grande sombra ou noite originária", mas ao "astro de Saturno que emerge da Noite remotíssima" – não estivesse "o segredo de tudo quanto os olhos supõem ver e as mãos iludem tocar no mais remoto e invisível", "no invisível obscuro". Daí, nomeadamente, o ter falado, a respeito de Bruno e de todos os outros pensadores portugueses "mais significativos", de "uma família de espíritos da mais remota ascendência: a daqueles cuja inspiração mítica, cujo logos formador não está no radioso Apolo, na clara luz solar, mas no divino oculto, nas constelações invisíveis", contrapondo-os aos "nada sábios mas astutos fiéis de Zeus".
Daí ainda a caracterização que José Marinho faz de todos os habitantes desse dito "país do sol poente", ou do "sol posto" – caracterizando-os como "tardios filhos da Grécia e do Cristianismo", ou como "extremos e incertos filhos da latinidade e do cristianismo nas terras do sol-posto" –, caracterização essa que privilegiadamente restringe ao povo português, que chegou a qualificar como – palavras suas – "povo extremo da Ibéria, povo extremo, cabe longamente pensá-lo, não da Europa mas da Eurásia, povo que recusa por igual, num sentido, a contraposição de Apolo e Dioniso, e, noutro sentido, a mística absorta ou o grandioso drama humanizado, mas sem saída, de D.Quixote e Sancho Pança".Esporadicamente, porém, estende-a a todos os ibéricos. Daí, nomeadamente, o ter chegado a afirmar que "constituímos na Europa uma autêntica península no sentido espiritual e mais pleno do termo".
Sinal disso é, ainda segundo José Marinho, a diferença existente entre a nossa filosofia e a "filosofia de além-Pirinéus": "Se, com efeito, em nós, peninsulares, foi demasiado obsessivo o sentido dos fins, a filosofia de além-Pirinéus demorou-se bastante pelos caminhos e meios da natureza e da natural razão, da cidade e da razão da cidade.". Enquanto "povo extremo", enquanto povo que habita no extremo-Ocidente, o povo português tem, ainda segundo o nosso pensador, afinidades com outros povos extremos, nomeadamente com os povos eslavos, que habitam no outro extremo, no extremo leste, do Ocidente – ainda nas suas próprias palavras: "Tanto como a Espanha, ou os povos eslavos, e mais talvez do que eles, a situação do nosso povo é diferente e sob certos aspectos contrastantes da dos povos da Europa.". Aliás, José Marinho chega mesmo a dar exemplos dessas afinidades, ao aproximar o pensamento de Sampaio Bruno e de Leonardo Coimbra do "grande pensamento da tradição eslava", nomeadamente do de Wronski, Soloviev, Chestov e Berdiaeff.
A mesma aproximação poderia aliás ter feito a respeito da sua própria filosofia, porventura ainda com maior pertinência…
Ao fazer todas estas considerações, tem contudo José Marinho o cuidado – e a lucidez, sobretudo isso!… –, de não opor a "filosofia portuguesa" à "filosofia europeia". Em primeiro lugar, porque, tal como não há uma "filosofia puramente portuguesa", assim também não há uma "filosofia puramente europeia" – aliás, como chegou mesmo a escrever Marinho a esse respeito: "Tal pura filosofia nunca existiu, tal tradição entendida univocamente é um preconceito cultural, nada tem que ver com a autêntica filosofia e as suas sempre várias formas. Hoje, considerado em perspectiva realista, não idealizada, não convencional, a filosofia do século XIX e a dos nossos dias, revendo a partir do que somos e é o homem o pensar da Europa, podemos com segurança saber e dizer que não há filosofia pura, poesia pura, religião pura.".Em segundo lugar porque, havendo entre elas diferenças, há igualmente entre elas afinidades. Daí o próprio José Marinho caracterizar a "situação do pensamento português" como "diferente mas afim do pensamento europeu dos nossos dias".
Aliás, Marinho chegou mesmo a indicar, a respeito de Heidegger, uma "convergência entre a filosofia europeia e a filosofia portuguesa", indicação essa que reforçou ao dizer-nos que "é problema de máximo interesse a relação da nossa ontologia ou onto-fenomenologia, com as formas de análogo signo do pensamento alemão contemporâneo", de modo a podermos "empreender aquela nova compreensão do homem e do divino que desponta já" – como ele próprio escreveu, curiosamente numa carta dirigida a Álvaro Ribeiro: "…se nos importa penetrar as mais vastas perspectivas dos germânicos não é para segui-los, mas antes para empreendermos aquela nova compreensão do homem e do divino que desponta já. Talvez, na melhor poesia portuguesa moderna e no pensamento português está afirmando-a um pouco inconsciente ainda de si mesma: Antero-Bruno-Leonardo. Mas isto sem ideia de nacionalismo! Apenas penso que os povos periféricos da Europa, e os ibéricos entre eles, poderão caminhar para a nova harmonia da razão e da experiência, e do ideal e do real, do compreender e do visionar, que será o laço de harmonia do Oriente e do Ocidente, do grego e do hindú, do português e do guineense, do italiano e do abissínico.".
Ainda para Marinho, esse é, aliás, o sentido de "toda a evolução do pensamento filosófico moderno" – daí, nomeadamente, o ter-nos dito que toda essa evolução "nos encaminha justamente para precisar de nova maneira a essencialidade do conhecimento filosófico, estabelecendo de nova maneira a relação entre filosofia e ciência, filosofia e vida, conhecer e ser", nessa medida, a própria relação entre ser e verdade… Ao ouvirem estas palavras, considerarão alguns que José Marinho foi, nesta passagem, demasiado optimista, demasiado ingénuo, sobretudo quando antevê uma "nova harmonia" entre ser e verdade, ou seja, entre "Deus", "o ser da verdade", e todos os seres, e o próprio homem, precisamente numa época em que nunca o homem e "Deus" estiverem tão afastados, a ponto de, aparentemente, o homem ter negado "Deus" para sempre. Tal não se verifica, porém. Marinho tinha plena consciência dessa situação – tanto a tinha que chegou a caracterizar a modernidade como a "época da cisão extrema" , ou seja, como a época em que essa "situação de extrema separatividade [do homem] em relação a Deus e à Natureza"se cumpre plenamente.
No entanto, para Marinho, "a grandeza da civilização moderna" está, precisamente, em permitir o desenvolvimento dessa "cisão extrema", dessa "situação de extrema separatividade", ou seja, "em permitir o desenvolvimento do ateísmo". E isto porque, para o nosso pensador, é precisamente do desenvolvimento do ateísmo, da extremação da cisão, da "cisão extrema", que despontará – que poderá despontar!… –, em última instância, essa "nova harmonia" entre "Deus", homem e Natureza. Tal, com efeito, para Marinho, todo o alcance do ateísmo enquanto fenómeno histórico, de todos o mais marcante da modernidade. Na medida em que "a crença em Deus degenerou, arrastando consigo o próprio Deus", o ateísmo moderno acaba por ser a via através da qual a humanidade purificará – poderá purificar!… – a sua relação com "Deus". Tal o que, de uma forma mais ou menos expressa, o próprio Marinho defendeu em diversas passagens da sua obra – a título de exemplo, atentemos nestas: "Tudo se passa como se Deus preferisse ser negado a ser minorado em qualquer forma de antropomorfismo."; "Deus, desde sempre, não confia na fé e no saber dos homens. Ser negado estava também nos seus desígnios."; "...porque se tornou Deus o mais remoto para mim? A resposta é: para que eu me torne dele responsavelmente mais próximo.".
Esse é, aliás, para José Marinho, o "caminho do Oriente", o verdadeiro "caminho do Oriente": o caminho, o infindo caminho, de regresso ao divino…
Ainda que de uma outra forma, foi igualmente essa "nova harmonia" entre "Deus", homem e Natureza, o que Antero de Quental, em última instância, visou. E isto não obstante Antero, ele próprio, ter renegado qualquer originalidade filosófica, nomeadamente numa passagem de uma carta que dirigiu a Jaime Batalha Reis – onde escreveu: "A dita minha Filosofia não é original. É antes uma fusão (não amálgama) do Hegelianismo com a monadologia do Leibniz (…)." –, e, sobretudo, na sua célebre carta a Wilhelm Storck, onde, ao fazer a retrospectiva do seu percurso de vida, e o de toda a sua geração – a primeira, como aí escreve, que em Portugal "saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição" –, reconhece que, a partir de certa altura, se sentiu "definitivamente conquistado para o Germanismo", em particular, para a filosofia de Hegel – nas suas próprias palavras: "Li depois muito de Hegel, nas traduções francesas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi alemão). Não sei se o entendi bem, nem a independência do meu espírito me consentia ser discípulo: mas é certo que me seduziram as tendências grandiosas daquela estupenda síntese. Em todo o caso, o Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações filosóficas, e posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução intelectual.".
Tendo sido esse o seu "ponto de partida", não foi contudo esse o seu "ponto de chegada". Ainda nessa sua célebre carta a Wilhelm Storck, assume Antero uma "evolução de pensamento", de tal modo significativa que o levou inclusivamente a renegar o naturalismo de que partira, em prol de um "psiquismo" de pendor espiritualista, de uma monadologia "convenientemente reformada" – ainda nas suas palavras: "O naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das coisas, mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser. No Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos físicos e elementares. A monadologia de Leibniz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espírito é que é o tipo de realidade: a natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O universo tem pois como lei suprema o bem, a essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um cárcere: ele é pelo contrário o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo.".
Tal evolução espiritualista do seu pensamento levou, aliás, a que, como ele próprio refere, fosse "apresentado como budista" por Oliveira Martins, no seu célebre prefácio da primeira edição dos Sonetos. Antero, contudo, ainda na sua carta a Storck, rejeita essa classificação, por muito que reconheça o muito que há "em comum" entre as suas doutrinas e o Budismo, e isto não obstante antever no próprio Budismo, também ele "convenientemente reformado", "a direcção definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina bússola do espírito humano" – ainda nas suas palavras: "O meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como um budista. Há, com efeito, muita coisa em comum entre as minhas doutrinas e o Budismo, mas creio que há nelas mais alguma coisa do que isso. Parece-me que é esta a tendência do espírito moderno que, dada a sua direcção e os seus pontos de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior estado de bancarrota, senão por esta porta do psicodinamismo ou pampsiquismo. Creio que é este o ponto nodal e o centro de atracção da grande nebulose do pensamento moderno, em via de condensação. Por toda a parte, mas sobretudo na Alemanha, encontra-se sinais claros dessa tendência. O Ocidente produzirá, pois, por seu turno, o seu Budismo, a sua doutrina mística definitiva, mas com mais sólidos alicerces e, por todos os lados, em melhores condições do que o Oriente.".
Pela nossa parte, também rejeitamos essa classificação. Não obstante Antero, em outras cartas, ter quase sacralizado o Budismo, exaltando a sua "grande doutrina", o que nela é alegadamente "eterno e fonte de toda a consolação e bem moral", de "toda a satisfação e alegria" – tese de tal modo excessiva que até o próprio Antero se sentiu obrigado a relativizá-la –, não obstante, como bem observa Sant’Anna Dionísio, ser Antero um pensador propenso "a conceber o final do drama dos seres como uma reabsorção de tipo indostânico, ou seja, como uma terminal assimilação das criaturas no extático e imóvel oceano da substância primordial – o Nirvana", não nos parece, com efeito, que Antero tenha sido um budista. Por uma simples, mas ainda assim suficiente, razão: em momento algum prefigura Antero a plena "anulação do eu", mesmo quando prefigura a "união com Deus". Tal o que desde logo ressalta nas páginas finais das Tendências gerais da filosofia, a obra em que Antero mais expressamente prefigurou essa "união". Mesmo aí, com efeito, insiste Antero em afirmar a subsistência, ainda que "dissolvida", do "eu", do "indivíduo" – nas suas próprias palavras: "O eu limitado, refluindo, se assim se pode dizer, para o seu centro verdadeiro, dissolve-se nalguma coisa de absoluto, já não individualizado mas ainda ligado ao indivíduo (…).". Aliás, no seguimento desta passagem, chega inclusivamente Antero a caracterizar a "união da alma com Deus" como a "união do eu com o seu tipo de perfeição", ou ainda como a "realização na consciência do seu momento último e mais verdadeiro".
Ora, como é sabido, a anulação do "eu", do "indivíduo", da "consciência individual", é, precisamente, um dos principais preceitos budistas…
Quanto muito, aproxima-se Antero desse "Budismo ocidental", que, nessa sua carta a Storck, profetizou. Mas que Budismo será, em concreto, esse?… A essa questão Antero não nos responde. Fala-nos apenas, ainda numa sua outra carta, de uma síntese do Helenismo com o Budismo, de um "Helenismo coroado por um Budismo", síntese que enuncia da seguinte forma: "…o Helenismo, isto é, a vida natural, nos seus diversíssimos tipos, na riqueza da sua evolução, aproximando-se ou afastando-se mais ou menos da compreensão transcendente, cuja expressão é o Budismo, que propriamente se lhe não opõe, mas o completa superiormente.". Eis pois, para Antero, "a direcção definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina bússola do espírito humano": complementar o sentido helénico da diversidade com o sentido unitário do Budismo. A ser assim, o facto de, como verificámos, em momento algum Antero prefigurar a "anulação do eu", a plena "anulação do eu", mesmo quando prefigura a "união com Deus", antes insistindo em afirmar a sua subsistência, ainda que "dissolvida", não é um entrave, mas, ao invés, uma porta aberta a esse "Budismo ocidental", a esse Budismo que, conservando o que o Budismo propriamente dito tem de melhor – o sentido da "unidade entre todos os entes" –, não renega o que em grande medida sustentou, para o bem e para o mal, toda a história da filosofia no Ocidente – o sentido da consciência, da consciência humana, cumulativamente, o sentido da individualidade, irredutível, do homem, de cada um de nós…