domingo, agosto 20, 2006

Paganismo e Wicca

PAGANISMO E WICCA
Surge no século XX uma religião que pretende celebrar de fovo a natureza, que vai buscar a sua inspiração aos antigos cultos pré-cristãos da "Grande Mãe" (ELIADE,1949 pag.306), às celebrações dos ciclos anuais das colheitas, ao culto do Deus da Terra que periodicamente morre e renasce e a toda uma série de formas de expressão religiosa em que se encontra uma forte ligação à natureza e aos ciclos da vida.
Os objectivos do Paganismo são os do auto-conhecimento, da harmonia com os ritmos e ciclos naturais do sol e das estações , da compreensão dos poderes da natureza e a busca de um novo equilíbrio do homem com o seu meio Não se baseia numa teologia única ou definida, não possui profetas ou mestres.
Baseia-se na experiência e sensibilidade de cada ue que queira e seja capaz de praticar essa harmonia. Pode assim dizer-se que o Paganismo não pretende ser uma religião de massas mas pode ser considerada uma religião de "clero", ou seja, qualquer membro é "sacerdote" na medida em que entra em contacto directo com o divino e orienta práticas e rituais religiosos
Embora algumas correntes Pagãs afirmem que as suas tradições remontam à era Neolítica , ou mesmo que o Paganismo é o sucessor linear daquela que terá sido a primeira religião da humanidade, essas origens são muito discutíveis.
Muita da inspiração do Paganismo será proveniente de estudos efectuados sobre as religiões antigas, dos quais os mais citados são "O Ramo Dourado" de Frazer, "As Máscaras de Deus" de Joseph Campbell e "The Witch-Cult in Western Europe" de Margaret Murray.
Nalgumas tradições pagãs os seus membros consideram-se continuadores directos destas religiões antigas. Houve provavelmente uma busca de ideias, de processos, de rituais , uma outra visão do sagrado distinta da visão judaico-cristã que permeia as culturas ocidentais.
Foi com base nesta outra visão, bem como nalgumas tradições populares europeias, nos ensinamentos de diversas escolas ocultistas, em técnicas usadas pelos xamãs e num sem número de outras fontes que se foi construindo esta religião, chamada de Paganismo, Neo-Paganismo ou Religião Antiga.
Para ilustrar este processo, podemos aqui citar Starhawk, sacerdotisa norte-americana da Wicca (um dos ramos do Paganismo, de que falaremos à frente)
"A Wicca é realmente a Velha Religião, mas neste momento está a passar por tantas mudanças e desenvolvimento que, na essência, está mais a ser recriada do que revivida"
(The Spiral Dance, 1979).
Dentro do Paganismo existem diversos ramos, cada um dos quais baseado em tradições e mitos próprios.
Aquele que mais se tem desenvolvido, sendo neste momento o mais representativo, é designado Wicca, «Bruxaria» ou «A Arte»
Provém basicamente da tradição das Feiticeiras Anglo-Saxónicas e vai buscar muita da sua inspiração aos mitos e divindades celtas, galeses e irlandeses, recorrendo também no entanto a fontes clássicas (greco-romanas) e diversas tradições populares.
A Wicca é definida pela Pagan Federation como "...um caminho iniciático, uma religião de mistérios que guia os seus iniciados a uma profunda comunhão com os poderes da Natureza e da psique humana, conduzindo a uma transformação espiritual do indivíduo."
Uma frequente utilização da magia, entendida como um conjunto de técnicas capazes de manipular positivamente certas energias naturais, é a parte prática que mais distingue a Wicca de outros ramos do Paganismo, que se dedicam quase exclusivamente ao ritual celebratório.
A divulgação pública da Wicca começou no fim dos anos 40/ inicio dos anos 50 em Inglaterra , com a publicação por Gerald Gardner das obras "High Magic's Aid", "Witchcraft Today" e "The Meaning of Witchcraft", 1949, 1954 e 1959, respectivamente. O primeiro destes livros foi redigido em forma de ficção devido às leis anti-bruxaria vigentes no Reino Unido até 1951.
Embora muito criticado na época por quebrar a longa tradição secretista da Bruxaria, com a publicação destes livros, Gardner deu início a um movimento de expansão que até hoje não parou.
De Inglaterra a Wicca passou para o resto da Europa e para os E.U.A., não tanto como uma nova religião mas mais como um incentivo à divulgação de conhecimentos até aí secretos e a uma estruturaçãg básica para uma forma de manifestação religiosa individual , já então existente.
A forma como o Paganismo em geral e a Wicca em particular se têm desenvolvido é, com efeito, uma das suas características mais interessantes e que será, em alguns dos seus aspectos, analisada ao longo deste trabalho.
Existem hoje pessoas que se assumem como fazendo parte do movimento Neo-Pagão em toda a Europa, na América do Norte, Brasil, Austrália e Nova-Zelândia.
Os ramos multiplicam-se, as - Igrejas Pagãs são legalizadas em alguns países (E.U.A., Austrália, França) e estima-se que o número de praticantes atinja as centenas de milhar, sem que nunca se tenha ouvido falar de pregadores, «missionários», líderes carismáticos ou em apelos à conversão, semelhantes aos usados por outras religiões e movimentos espirituais para a sua expansão. Podemos realmente dizer que estamos perante
"uma religião sem convertidos"(Adler,M.,1979).

A Consciência Ecológica.

Sendo a Wicca uma religião da natureza, não é de espantar o seu interesse pelas questões ambientais.
Seja este interesse manifestado duma forma pública, através da colaboração com movimentos ecologistas e da participação em manifestações de defesa das espécies ou do meio ambiente, ou em privado tomando forma ritual ou mágico-simbólica, ele existe sempre como parte imprescindível da religião Pagã.

Os Wiccans sabem que
"...quanto mais se sintonizarem com o ambiente em que vivem e trabalham (...) mais significativa se tornará a sua religião, mais efectivo será o seu trabalho psíquico, maior a sua contribuição para o bem-estar e saúde de Gaia e mais realizadas e integradas estarão elas como seres humanos."
Este envolvimento com a natureza ultrapassa muito as formas profanas em que se faz normalmente a abordagem dos problemas ecológicos, transpondo o assunto para um nível em que a preservação da natureza/Gaia não tem apenas um interesse enquanto base material da vida humana, mas adquire uma dimensão sagrada, uma importância de per si que pode justificar mesmo o sacrifício de alguns interesses e benefícios humanos.
No inquérito realizado em 1985 nos E.U.A. por Margot Adler, diversas pessoas referiram que chegaram à Wicca através do seu interesse por questões ecológicas ou através do seu envolvimento com a natureza no seu dia-a-dia.
O Paganismo interpreta com maior profundidade estas questões ecológicas, uma vez que considera a natureza e qualquer dos seus elementos tão sagrados como o Deus ou a Deusa.
O respeito pela natureza é assim um valor intrínseco e fundamental no Paganismo.
Esta visão distancia-se de uma visão bíblica, na qual, ordenando Deus ao Homem que domine toda a terra e todas as criaturas viventes, pode justificar assim indirectamente a depredação que esse mesmo Homem tem feito dos recursos naturais.
Os Pagãos não têm , no entanto, um tipo de visão apaixonada e irreal dos problemas do ambiente.
São cidadãos urbanos ou rurais, conscientes dos problemas que assolam o mundo de hoje, que têm pela vida e pela humanidade um apreço tão grande como pela restante natureza. Os indivíduos que vão parar à Wicca, através ou não do seu desejo de intervir na salvaguarda da Terra, são pessoas que considerem o Homem e todas as outras criaturas viventes bem como os espaços onde habitam como sagrados.
O seu esforço é portanto dirigido simultaneamente no sentido da salvaguarda da natureza e no melhoramento da condição humana.
Na bibliografia consultada encontram-se diversas descrições e sugestões de rituais, práticas mágicas e acções ecológicas praticadas individualmente ou em grupo.
Em "Dreaming the Dark" é feita uma descrição expressiva de como as diversas abordagens política, religiosa, mágica e pessoal se conjugam numa mesma acção específica, como no caso da contestação à construção duma central nuclear numa zona sísmica da Califórnia:
diversos Pagãos protestaram publicamente em manifestações e além disso recorreram a rituais mágico-religiosos, para reforço do protesto.

O Individualismo Religioso.

A Wicca é uma religião em que não existem livros sagrados, nem profetas a justificá-los, hierarquia ou dogmas.
Não faz apelo a uma fé única e exclusiva, não tem mandamentos e promove acima de tudo o respeito e a diversidade.
Não é também um sincretismo religioso porque vários sincretismos são possíveis.
É uma escolha pessoal para aqueles que sentem que a sua percepçãg do sagrado não só não se enquadra nos esquemas tradicionais como é algo demasiado individual para se sujeitar a conjuntos de regras e crenças que outros determinaram.
As poucas regras existentes na Wicca têm um carácter essencialmente funcional e são vistas não como mandamentos duma qualquer divindade ou profeta iluminado, mas como simples normas de relacionamento entre pessoas que partilham interesses comuns.
São apenas alguns princípios genéricos ligados a valores ecológicos e individuais de largo consenso e à liberdade de expressão da religiosidade como é sentida e recriada por cada um.
O seu espírito está bem patente na regra básica "Faz o que quiseres desde que não faças mal", a única que todos os membros da Wicca procuram seguir
Esta diversidade exprime-se nas práticas de diferentes pessoas ou grupos.
Encontramos indivíduos que se assumem como monoteístas, politeístas, panteístas, e adeptos de tradições para quem apenas a Deusa é importante, ao lado de outras que dão o maior ênfase à polaridade, aos rituais e nomes de divindades retirados de todas as religiões conhecidas (e por vezes mesmo de obras fantásticas), nas mais variadas combinações cujos membros se relacionam num clima de aceitação e harmonia. Nas grandes reuniões, como o Pagan Spirit Gathering realizado anualmente no Winsconsin (E.U.A.) onde se juntam algumas centenas de pessoas, o relacionamento pauta-se por respeito e aceitação.
Durante uma semana realizam-se dezenas de rituais e workshops das mais diversas tradições sem que haja o mais leve atrito «teológico». Pelo contrário, o que se nota é uma constante curiosidade pelas crenças e rituais alheios e o desejo de partilhar e conhecer diferentes vivências religiosas.
A Wicca tem a sua maior implantação nos países anglo-saxónicos, onde a longa tradição democrática e o Protestantismo permitem um maior individualismo.
Para além de práticas individuais, os Pagãos agrupam-se em pequenos núcleos, tradicionalmente de 13 pessoas, cada qual com as suas regras e tradições; ainda se podem juntar em grandes encontros.
Nestes encontros estendem-se ao campo religioso os princípios de liberdade de expressão e de associação já há muito aplicados noutros sectores da sociedade.
Ao contrário de outras religiões e de outras organizações não existe aqui uma estrutura hierárquica nem uma autoridade central.

Conclusões

O Neo-Paganismo surge numa época em que somos diariamente confrontados com o aparecimento duma série de novas igrejas, seitas ou movimentos religiosos.
Como tal torna-se importante tentar situar o (res)surgimento público do Paganismo neste contexto e perceber quais as semelhanças e diferenças deste movimento religioso relativamente a outros.
Os movimentos pagãos estão a crescer e a aumentar o seu número de adeptos sem que, para isso abordem as pessoas, as aliciem a tornar-se membros ou façam campanhas de divulgação pública.
Não há dúvida que algumas das características do Paganismo se encontram também em muitas das novas Igrejas:
rituais participativos e que conduzem a estados de êxtase, uma relação com a divindade , mais próxima que nas Igrejas tradicionais, uma relação de proximidade, de irmandade, entre os seus membros, uma utilização da magia e ritual para conseguir diversos resultados práticos, como por exemplo a cura de doenças.
Contudo existem diferenças.
A primeira que se nota é uma quase completa ausência de prositelismo.
Não só os Pagãos não pretendem divulgar a sua religião porta a porta, como de um modo geral, não dão evidências explícitas de pertencer a este movimento. Esta atitude não se deve a uma intenção de secretismo, já que a qualquer pessoa interessada pelo Paganismo são dadas uma série de informação sobre rituais, grupos, publicações e actividades diversas.
Parece-nos que os pagãos optam por ter uma atitude discreta, pois pensam que a aproximação ao Paganismo deve resultar de uma escolha individual ditada por interesses e necessidades interiores de cada um.
É filosofia adoptada nesta comunidade «se estás interessado, procura-nos, se te sentes bem fica onde estás».
Esta discrição também se deve à falta de aceitação, ao medo e à desconfiança que a sociedade tem em relação aos Pagãos.
Ainda há um estigma que evoca sentimentos ambíguos quando nos referimos a Paganismo e Bruxaria.
Ainda temos reminescências dos tempos passados, em que as bruxas eram queimadas e perseguidas.
Verificámos, no entanto, que existe cada vez maior número de organizações Pagãs com o estatuto legal de Igrejas, lutando abertamente, e com bons resultados, pelo reconhecimento público de que a Wicca em particular e o Paganismo em geral são movimentos religiosos tão válidos com como qualquer outro.
Para compreender melhor esta aparente falta de empenhamento em granjear novos adeptos, devemos ter presente a natureza da Wicca, as suas estruturas internas e os interesses que movem os seus praticantes.
Como temos visto, a Wicca é uma religião sem um credo único e sem textos sagrados, baseada mais na ligação à natureza e ao arquétipo da Deusa Mãe e nos sentimentos e inspirações pessoais dos seus praticantes, do que em quaisquer textos ou ensinamentos.
É assim uma religião com um cunho marcadamente individualista.
À excepção de algumas ocasiões festivas em que se reúne um grande número de adeptos (geralmente de diversas tradições) para confraternizar e celebrar conjuntamente determinados momentos significativos como por exemplo, os Solestícios, os rituais são celebrados por pequenos grupos independentes ou isoladamente.
A quase totalidade das organizações Pagãs existentes têm principalmente um papel de intercâmbio e apoio, não pretendendo dirigir ou controlar os seus membros, que provavelmente não aceitariam qualquer espécie de controle.
As tentativas pontuais conhecidas, nesse sentido, não deram resultado.
Dentro deste panorama, qualquer ideia de «conversão» ou «missionarismo» é algo, entendido pelos Pagãos, como completamente alienígena.
A Wicca é uma religião sem convertidos, uma expressão compartilhada dum sentimento do Sagrado que lhe é próprio, não se conformando com regras impostas do exterior, com regras que não sejam decorrentes da vontade individual.
Em virtude desta forte componente individualista e da ausência de um conjunto de normas explícitas e vinculativas, não existe hierarquia religiosa.
Cada membro deve, assim, decidir, praticar e dirigir as suas práticas e rituais.

Bibliografia

Adler, Margot - "Drawing Down the Moon", Beacom Press, Boston,1979.
Circle Network News - Publicação trimensal de Circle, Winscosin.
Campbell, Joseph - "The Masks of God", Viking Press, Nova Iorque, 1959-1962.
Cunningham, Scott - "Wicca", Llewellyn Publications, St.Paul,1988.
Eliade, Mircea - "Tratado de História das Religiões", Payot, Paris, 1949.
- "O Sagrado e o Profano", Livros do Brasil, Lisboa, 1956.
Farrar, Janet and Stewart - "The Witches Way", Hale, London, 1984.
- "The Life and Times of a Modern Witch", Piatkus Books, Londres, 1987.
- "O Deus dos Magos", Ed. Siciliano, S.Paulo, 1989.
Frazer, James - "The Golden Bough", Papermac, Londres, 1922.
Gardner, Gerald - "High Magic's Aid", Houghton, Londres, 1949.
- "Witchcraft Today", Rider, Londres, 1954.
- "The Meaning of Witchcraft", Aquarian Press, Londres, 1959.
Graves, Robert - "The White Goddess", Farrar,Straus & Giroux, Nova Iorque, 1948.
Murray, Magaret - "The God of the Witches", Daimon Press, Essex, 1931.
- "The Witch-cult in Western Europe", Oxford Press, Londres, 1921.
Starhawk - "The Spiral Dance", Harper & Row, S.Francisco, 1979.
- "Dreaming the Dark", Beacom Press, Boston, 1982.