sábado, maio 01, 2004

O que é a ciencia

O QUE É A CIÊNCIA
Ciência e pseudociência

O astrofísico e divulgador de ciência norte-americano Carl Sagan, no seu excelente livro O Mundo Infestado de Demónios (que, como a maioria dos outros livros de Sagan, saiu em português do prelo da Gradiva), disse que, se um cientista for chamado a tribunal e lhe for pedido que «jure dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade» está perante um difícil dilema: ou jura e vai cometer perjúrio, porque ninguém, evidentemente, pode dizer «toda a verdade», ou não jura e está a desobedecer à intimação judicial.
O que é a verdade? O sentido desta palavra varia de uma ­maneira tão grande conforme se tenha um contexto especializado, científico, jurídico, religioso, ou simplesmente um contexto de senso comum e quotidiano, que não será arriscado afirmar que há tantas verdades conforme as pessoas que invocam a palavra e, portanto, que não há nenhuma verdade (será esta uma metaverdade?). Os filósofos, esses incansáveis procuradores de significados, têm ao longo dos tempos procurado definir verdade sem eles próprios chegarem a um con­senso alargado.
No entanto, os cientistas estão de acordo sobre muitas coisas a que podemos de facto chamar «verdades». Ouve-se muitas vezes dizer que a ciência é a procura da verdade. Como podem os cientistas procurar, e mesmo encontrar, uma coisa tão indefinida, tão ambígua e evasiva? De facto, a ciência não será tanto a procura da verdade, mas mais a procura da mentira! Cada ramo da ciência — e eles são tantos ... — persegue objectivos tão distintos, servindo-se de metodologias tão diversas, que se torna difícil enunciar um elemento comum a todos. Para alguns sociólogos, a ciência será apenas a actividade desenvolvida pelos auto-intitulados cientistas, uma definição evidentemente tautológica. Mas os filósofos da ­ciência — os filósofos que procuram identificar o significado de ciência — concordam, em geral, com o seu colega austríaco Karl Popper quando afirma que a ciência é a procura da mentira, do erro, da inconsistência. Os cientistas procuram mostrar que estão errados: passam a vida à procura de erros, seus ou dos outros.
Sob a égide desta fuga ao erro podem unir-se disciplinas tão díspares como a matemática (onde o erro é a falta de lógica), a física, a química e a biologia (onde o erro é a falta de concordância com a observação ou a experiência) e as ciências humanas (onde o erro pode ser a falta de coerência interna ou externa). Esta última expressão — ciências humanas — pode ser criticada uma vez que todas as ciências são humanas na medida em que todas elas são feitas pelo e para o homem. Errar é humano, diziam os antigos Latinos. Mas errar muito é inumano. Errar cada vez menos é a tentativa humana dos praticantes das várias ciências. Ao que resta, depois de descartado o erro mais óbvio, podemos, provisoriamente, chamar verdade.
Não é fácil evitar o erro. Ele espreita a mínima oportunidade para se intrometer onde ninguém o chama. Está contido em muitas observações e afirmações vulgares, que têm toda a aparência de verdadeiras. A ciência tem de ultrapassar o senso comum (por exemplo, o Sol não anda em volta da Terra, apesar da evidência quo­tidiana em abono do contrário). Daí a dificuldade do trabalho ­científico. Os grandes cientistas foram aqueles que conseguiram denunciar os erros mais subtis e entranhados (como, por exemplo, o polaco Nicolau Copérnico e o italiano Galileu Galilei). Para descobrir alguns erros (permitindo que a seguir surjam outros, ainda mais refinados), é preciso, muitas vezes, uma extraordinária imaginação. Extraordinária porque não se trata de uma imaginação livre, mas sim, nas palavras do físico norte-americano Richard Feynman, de uma «imaginação dentro de uma camisa de forças». O desafio é sempre saber mais sem deixar de saber o que mais se sabe. Mudar um pouco sem abalar tudo. Deitar fora a água do banho com o cuidado de não perder o bebé.
Um traço caracterizador da ciência que se revela indispensável no processo de descoberta do erro é a sua abertura. A ciência fe­chada, oculta, não é ciência. A ciência consegue sê-lo, descobrir os seus erros passados e assentar as suas verdades provisórias apenas na medida em que é comunicada. Um erro passa facilmente despercebido a dois olhos ou a dois hemisférios cerebrais, mas quatro olhos vêem mais do que dois e quatro hemisférios pensam mais do que dois ... Os cientistas formam uma comunidade à escala do planeta que partilha o reconhecimento de erros e que, por isso, está permanentemente num estado de alerta crítico perante toda a informação que recolhem da natureza e uns dos outros.
Mas há um segundo traço caracterizador da ciência. Ao incorporar novas informações depois de devidamente validadas (poder-se-á dizer, ao incorporá-las, «filtradas», e não em «bruto»), a ciência é cumulativa: avança por passos sucessivos, adicionando de cada vez um pouco de novo sem prejudicar muito do velho (por exemplo, Albert Einstein conseguiu, num golpe de génio, mudar a mecânica de Galileu e Newton, mantendo-a praticamente intacta num limite bem definido). Alguns elementos de um corpo de saber científico são provisórios, uma vez que serão arredados quando novas inconsistências surgirem e forem resolvidas. Mas até lá não devem ser levianamente abandonados e mesmo lá não podem ser removidos sem se ficar com algo em troca. O essencial de um corpo de saber científico é definitivo. Apesar de algumas descontinuidades que a história mostra, a ciência tem uma continuidade evidente, porque nunca se põe completamente em causa. Nunca se abandona a si própria.
Dito isto sobre a ciência, torna-se fácil falar de pseudociência. Pseudociência, ou falsa ciência, é tudo o que pretende passar por ciência, talvez na tentativa de obter o prestígio e o reconhecimento de que a ciência goza, mas não é de facto ciência. E não é ciência porque não reconhece de forma permanente e inequívoca a exis­tência de eventuais erros. Um cientista procura sempre saber se está enganado (se está, fica contente quando deixa de estar). Um pseudo­cientista, se esta designação faz algum sentido como pro­fissão, não admite que se engana e não procura por isso o erro (mais: costuma ficar irritado quando lhe apontam o dislate). As actividades pseudocientíficas são numerosas no mundo de hoje: exemplos são a numerologia, a astrologia, a radiestesia, a alquimia, a quiromancia, etc., etc. Há até quem leia o futuro nas borras do café, tendo esse ofício não só uma designação específica, como uma comunidade de adeptos. São mais as pseudociências do que as ciências.
Existe, em geral, uma relação histórica entre pseudociência e ciência: aquela precedeu esta (a numerologia foi anterior à matemática, a astrologia anterior à astronomia, a alquimia anterior à química). Poderia, por isso, pensar-se que as pseudociências teriam sido substituídas pelas ciências e abandonadas, mas não é assim: as pseudociências coexistem hoje com as ciências, confundindo-se umas e outras aos olhos e nos cérebros de muita gente. Um paradoxo muito interessante das sociedades desenvolvidas (e cujo desen­volvimento deriva precisamente do cultivo das ciências e das tecnologias) é o facto de as pseudociências continuarem a ocupar um papel socialmente relevante.
Mas convém estar atento e descobrir as diferenças: assim como a definição de actividade científica — a busca do erro — não ­assenta nas várias actividades pseudocientíficas, também os traços característicos da ciência — a comunicação e a acumulação — não se encontram onde a ciência falta. A astrologia não é astronomia porque um astrólogo não se expõe à crítica dos pares (onde é que já se viu um astrólogo corrigir outro?) e porque a astrologia de hoje é essencialmente a astrologia de há um século (pode até ser feita com computadores, mas a forma não rejuvenesce o conteúdo). Usando estes critérios simples, não será difícil ao leitor distinguir entre o que é ciência e o que, não o sendo, quer passar por ela.
Portugal, um país em desenvolvimento, está cada vez mais exposto a correntes pseudocientíficas. Qual é o remédio? Mais ciência, mais cultura científica. Os cientistas, os professores de ciên­cias, os cidadãos cientificamente cultos têm o dever, mais do que o direito, de mostrar ao público o valor da ciência, o que ela já conseguiu para o enriquecimento humano e o mais que poderá ainda conseguir (e que excede em muito os resultados da tecnologia que nos têm garantido a sobrevivência física). A ciência é um ingre­diente da cultura, da civilização neste planeta. Nas palavras autorizadas de Albert Einstein, escolhido pela revista Time como «homem do século»:

Comparada com a realidade, a nossa ciência pode parecer primitiva e infantil, mas é a coisa mais preciosa que temos.

"A COISA MAIS PRECIOSA QUE TEMOS "
Carlos