sexta-feira, outubro 27, 2006

Obsceno

Um trabalho que acho de leitura muito interessante sobre o Obsceno, não conheço a aluna e espero que ela me perdoe o colocar aqui este seu trabalho.


Sara Sá Leão
O Obsceno



Les trois quarts de l'univers peuvent trouver agréable l'odeur d'une rose sans que cela puisse servir d'épreuve, ni pour condamner le quart qui pourrait la trouver mauvaise, ni pour prouver que cette odeur soit véritablement agréable.

Mário Cesariny, introdução a uma obra de Sade.

Quando nos propomos estudar o obsceno (ou outros conceitos, como o oculto) deparamo-nos imediatamente com o problema da clandestinidade. Tudo o que foi considerado obsceno numa dada época foi, por definição, escondido, ficando muitas vezes como um segredo impenetrável para o futuro e para a História. Verificamos de seguida que os objectos tidos como obscenos variam segundo as épocas e os espaços (físicos e sociais) e que o próprio conceito apresenta vários sentidos. Podemos resumir as várias acepções da palavra em três variantes (que nos dão a entender imediatamente, a ambiguidade do conceito):o que deve estar fora de cena; o impúdico, que ofende o pudor; o que sendo impúdico ou chocante atrai e excita.

Apercebemo-nos então que estamos em "terreno pantanoso"…Os teóricos que falam do obsceno afirmam, antes de mais, que "não há nenhuma definição do que é obsceno".

Ora, sendo a palavra de origem latina, vejamos o que diz um dicionário de latim:


Obscenus, a, um (adj.) - 1. De mau agouro, sinistro, funesto, fatal. 2. De aspecto feio ou repelente, hediondo, horrendo. 3. Impúdico, desonesto, indecente, obsceno [1]

// obscena, orum (n. pl.) 1. Órgãos genitais do homem. 2. Excrementos.

Vejamos também a palavra que os dicionários de hoje apontam como sendo o antónimo:

Pudor, oris (m.) - 1. Sentimento de vergonha, pejo// pudorem rubor consequitor, Cic., o rubor acompanha a vergonha. 2. Timidez, reserva, modéstia. 3. Pudor, castidade, honra. 4. Sentimento de honra, sentimento moral, honradez, virtude. 5. Vergonha, desonra, infâmia.

Ficamos então a saber que o obsceno causa a vergonha e que, por isso, faz corar, mas para além da referência escatológica e sexual de "obscena, orum", pouco adiantamos quanto à sua definição.

Na verdade, muitos gostariam de ter a tranquilidade de ver este conceito definido, mas tal implicaria sempre uma diminuição de liberdade, visto que a definição de algo tão subjectivo e ambíguo teria de ser uma definição imposta.

No livro Obscenidade e reflexão (a que farei referência várias vezes e cuja leitura aconselho vivamente) Henry Miller dá especial relevo à impossibilidade de definição da obscenidade:

Basta que se diga que todos os que tentaram, de maneira escrupulosa descobrir o sentido da palavra, se viram obrigados a confessar que de maneira alguma tinham atingido o seu objectivo. No livro por ambos escrito To The Pure Ernst e Seagle são peremptórios em afirmar que "não há duas pessoas que estejam de acordo sobre a definição dos seis adjectivos mortais: obsceno, lúbrico, lascivo, sujo, indecente, vergonhoso." Até a própria Sociedade das Nações fracassou ao tentar definir o que constituía a obscenidade - e certamente que não escasseava a razão a D. H. Lawrence quando afirmava, pura e simplesmente, que "ninguém sabe o que a palavra obscena quer significar". Quanto a Theodore Schroeder, que consagrou toda a vida à luta pela liberdade de expressão, emitiu a opinião de que "a obscenidade não existe em nenhum livro ou quadro, mais não sendo que uma feição do espírito que lê ou que olha." [2]

O problema da definição põe-se sobretudo do ponto de vista legal. Quem é que determina o que é obsceno? Com que critérios? Com que direito? Da Inquisição à Internet, o problema da censura é sempre polémico.

Mas o objectivo deste trabalho é tentar perceber melhor as várias acepções do conceito, quais os objectos considerados obscenos e os efeitos que provocam.

Começarei então por ver de que forma é tratado o obsceno na Poética de Aristóteles, na Arte Poética de Horácio e em A Philosophical Inquiry Into The Origin Of Our Ideas Of The Sublime And Beautiful With Several Other Additions de Edmund Burke, passando, de seguida, à apresentação de alguns poemas da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica.[3]

Segundo Aristóteles:


O terror e a piedade podem surgir por efeito do espectáculo cénico, mas também podem derivar da íntima conexão dos actos, e este é o procedimento preferível e o mais digno do poeta. Porque o mito deve ser composto de tal maneira que, quem ouvir as coisas que vão acontecendo, ainda que nada veja, só pelos sucessos trema e se apiede (…).

Quanto aos que procuram sugerir pelo espectáculo, não o tremendo, mas o monstruoso, esses nada produzem de trágico; porque da tragédia não há que extrair toda a espécie de prazeres, mas tão-só o que lhe é próprio. Ora, como o poeta deve procurar apenas o prazer inerente à piedade e ao terror, provocados pela imitação, bem se vê que é na mesma composição dos factos que se ingeram tais emoções.[4]

A representação do "monstruoso", o "abuso do espectacular" provocariam "o horror e não o terror trágico" [5]. Édipo não fura os olhos em cena, é o mensageiro que anuncia a morte de Jocasta, todas as acções demasiado violentas ou de alguma outra forma imorais passam-se fora de cena.

Eudoro de Sousa nota que "os mitos mais trágicos são precisamente os mais imorais". Isso deve-se ao preceito aristotélico que recomenda que as acções catastróficas se passem entre amigos ou familiares, pois "se as coisas se passam entre inimigos, não há que compadecer-nos, nem pelas acções nem pelas intenções deles, a não ser pelo aspecto lutuoso dos acontecimentos".[6]

Ora se imaginarmos o que seria assistir à representação de cenas de incesto, de assassínio de consanguíneos, de auto-mutilação e de suicídio podemos prever que tais cenas suscitariam muito mais horror, repugnância e revolta que terror e piedade.

Encontraremos também em Horácio e em Burke a ideia de que determinadas coisas devem ficar fora de cena e de que as palavras - o relato dos factos - têm mais poder sobre a imaginação do que as imagens.

Quanto a Horácio, há que dizer, antes de mais, que a preocupação de que tudo seja feito com critério, moderação e adequação evitam à partida o obsceno. Assim, na Arte Poética, Horácio desaconselha vários tipos de "obscenidades".

Logo nos primeiros versos, restringe a liberdade poética explicitada no "dito antigo" – "a pintores e poetas igualmente se concedeu desde sempre, a faculdade de tudo ousar"- dizendo: "sem permitir contudo que à mansidão se junte a ferocidade e que se associem serpentes a aves e cordeiros a tigres" [7]. Faz portanto, a defesa da verosimilhança - a poesia deve representar a realidade, imitá-la - e como tal, recomenda que essas fantasias "surrealistas" (curiosamente muito usadas na Mitologia Grega) não sejam representadas em nome da simplicidade e da unidade.

De facto, para Horácio, o obsceno é mais o inverosímil do que o chocante como podemos observar na justificação que dá à regra que vimos enunciada na Poética – a de que determinados acontecimentos (demasiado violentos ou maravilhosos) não devem ser representados mas sim narrados:

Há acções que se representam no palco, outras, só se relatam depois de cometidas. O que se transmitir pelo ouvido, comove mais debilmente os espíritos do que aquelas coisas que são oferecidas aos olhos, testemunhas fiéis, e as quais o espectador apreende por si próprio. Não faças, no entanto, representar na cena o que deva passar-se nos bastidores, retira muitas coisas da vista, essas que melhor descreve a facúndia de uma testemunha. Que Medeia não trucide os filhos diante do público, nem o nefando Atreu cozinhe publicamente entranhas humanas; tão pouco em ave Procne se transforme ou Cadmo em serpente. Detestarei tudo o que assim me mostrares, porque ficarei incrédulo. [8]

Outra passagem que está relacionada com o obsceno é a que se refere à adequação da linguagem ao género, à personagem que fala e ao público (Horácio parece preocupar-se, não só com a verosimilhança, mas também com o pudor dos patrícios):

A linguagem dos Faunos não deve ser polida" porque se torna inverosímil mas também não pode ser "suja e obscena" ao ponto de ofender "o bom gosto do cavaleiro, do nobre, do abastado.[9]

Finalmente, há ainda a comentar a ideia de que "a poesia deve ensinar e dar prazer" [10]. Quanto à pedagogia, encontramos o exemplo do coro da comédia antiga, suprimido por lei "porque recorrera ao ataque pessoal e defendera ideias que nem sempre agradavam aos políticos" [11]; e quanto ao prazer Horácio diz que o que deve ficar fora de cena é a poesia mediana, a poesia sem a protecção de Minerva [12].

Independentemente do sentido que se dê ao conceito de obsceno e dos objectos que se lhe atribuam, parece ser consensual que há coisas que não devem ser apresentadas ou representadas. Mas uma das questões mais difíceis de responder relativamente ao obsceno é se este é afinal belo ou horrendo, se suscita repulsa ou se atrai, se causa dor ou prazer, ou se é tudo isto ao mesmo tempo.

Vejamos de que maneira Burke nos pode ajudar a entender a natureza do obsceno.

Duas das "paixões da sociedade", segundo Burke, são a simpatia e a imitação: "For sympathy must be considered as a sort of substitution, by which we are put into the place of another man, and affected in many respects as he is affected" [13]. Assim, dependendo da situação, a simpatia pode causar dor, sublime ou prazer e não nos permite ficar indiferentes a praticamente nada do que o homem possa fazer ou sofrer.

As artes baseiam-se nesse princípio para transmitirem (através da imitação) as emoções e, curiosamente, objectos que na realidade seriam chocantes são, nas representações, como a tragédia, fonte de prazer.

Burke diz que habitualmente se atribui esse prazer ao facto de estarmos livres de tais perigos ou por se tratar apenas de ficção mas, assim, atribui-se a causa de tais sentimentos à reflexão, quando na verdade a razão tem pouca influência na produção de tais paixões que resultam da constituição natural do nosso corpo e mente.

Para analisar convenientemente os efeitos da tragédia, Burke prefere considerar antes os efeitos da simpatia na desgraça alheia. Assim, afirma que:

I am convinced we have a degree of delight, and that no small one, in the real misfortunes and pains of others; for let the affection be what it will in appearance, if it does not make us shun such objects, if on the contrary it induces us to approach them, if it makes us dwell upon them, in this case I conceive we must have a delight or pleasure of some species or other in contemplating objects of this kind. [14]

Dá como exemplos o facto de lermos, com igual prazer, histórias reais e romances em que os acontecimentos são fictícios e de vibrarmos mais com a desgraça de alguém próspero do que com a prosperidade estável explicando que o terror é acompanhado de prazer quando não afecta de forma próxima e que a piedade leva ao prazer por nascer do amor e do afecto social.

A própria simpatia é fonte de prazer, visto que fomos naturalmente formados para ela - "Whenever we are formed by nature to any active purpose, the passion which animates us to it is attended with delight" [15], é um laço que une os homens e é especialmente necessária no que diz respeito à infelicidade alheia. Sendo um instinto, anterior à reflexão, provoca uma sensação de prazer misturado com inquietação perante uma calamidade ou o relato dela.

Finalmente, quanto aos efeitos da tragédia, Burke diz que nos agrada o facto de se tratar de uma representação, mas que quanto mais diminui a ideia de ficção mais perfeito é o seu poder, nunca se aproximando este, no entanto, daquilo que representa.

Para provar o triunfo da simpatia real Burke dá o seguinte exemplo:

Choose a day on which to represent the most sublime and affecting tragedy we have; appoint the most favourite actors; spare no cost upon the scenes and decorations, unite the greatest efforts of poetry, painting, and music; and when you have collected your audience, just at the moment when their minds are erect with expectation, let it be reported that a state criminal of high rank is on the point of being executed in the adjoining square; in a moment the emptiness of the theater would demonstrate the comparative weakness of the imitative arts, and proclaim the triumph of the real sympathy. [16]

Aparentemente contraditória, a preferência da calamidade real sobre a fictícia é explicada pelo facto de não distinguirmos bem entre o que não faríamos e não gostaríamos que fosse feito e tentaríamos até impedir que acontecesse e o que gostaríamos de ver se já estivesse feito.

Um exemplo disso bem próximo de nós é a passagem exaustiva nos media das imagens da derrocada das Twin Towers e do terror que viveram os nova-iorquinos em Setembro passado. Como já foi referido, Burke defende que o prazer que sentimos não se deve ao facto de estarmos livres de perigo, pois isso é condição (e não causa) para que possamos apreciar seja o que for.

Fica por saber porque temos prazer em observar o que é tido como ofensa ao pudor e que diz respeito, geralmente, à "society of sex" - o erótico, a luxúria, sobretudo no que se refere ao corpo da mulher. Por outro lado, relativamente à "general society", Burke não dá resposta a questões como: porque é excluído socialmente aquele que é visto como obsceno (talvez pelo "instinto de auto-preservação", por suscitar dor e medo [17]) - desde as pessoas que se vestem de um modo extravagante aos mendigos que expõem as suas deficiências - mas apesar dessa exclusão as pessoas têm tendência a observá-lo avidamente (talvez pela novidade [18] e pelo prazer na desgraça alheia de que acabámos de falar).

Interessa-nos ainda a passagem em que Burke se aproxima de Horácio e de Aristóteles dizendo que a obscuridade e a privação têm efeitos importantes sobre a imaginação humana.

Burke justifica isto dizendo que o que não é claro influencia mais as paixões pela confusão e a incerteza. Por isso considera que a escrita e a música são preferíveis à pintura para suscitarem tais emoções e que se algo terrível for apresentado com claridade se torna ridículo pois todos nos sentimos mais aterrorizados quando não conhecemos os limites do que nos atemoriza. [19]

Para exemplo desta ideia de que a sugestão deixa mais à imaginação apresento o seguinte poema de Dieter Rot:


Ao domingo vai… passear

e pensa nas…

que dentro das…

se desfazem em…



À segunda vai…suar

e cheira as…

que dentro das…

se… e… saem.



À terça vai… cagar

e ouve os…,

que ao longo do…

se precipitam no…



À quarta vai… lavar

e vê os…,

que ao longo do…

se desfazem e entram no…



À quinta vai… pescar

e agarra nas…,

que dentro das…

vão ter às…



À sexta vai…esmagar

e agarra nas…,

que dentro das…

fazem montes de…



Ao sábado vai… dar de comer

e goza com os…

que através do…da…

se podem meter na…

Cito também os comentários da Professora Iracema Pinto de Andrade ao poema:


áposto que mesmo dentro desta selecta assistência (…) é prôvável quê não exista consenso para determinar se este poema é pornográfico ou não.

Imaginem só o que seria lê-lo por exemplo ao bêatério que neste momento está assistindo à missa da tarde ali dêfronte na igreja de nossa senhora de fátima! [20]

Sabemos que ao longo dos tempos muitas obras literárias foram censuradas e muitas atitudes condenadas por serem consideradas obscenas.

Mas afinal o que é o obsceno? Apesar de muito subjectivo podemos afirmar que geralmente a ideia de obscenidade está ligada ao corpo (sobretudo no que diz respeito à escatologia e ao sexo). Torna-se obsceno o que leva a uma violação da intimidade, não tanto da intimidade do narrador ou daqueles que se expõem (personagens) mas sobretudo do observador/leitor que não pode deixar de ver a sua intimidade reflectida.

O obsceno implica sempre fantasia e violência pois o observador sente que viola a intimidade de outrem e sente também a sua intimidade violada pela projecção que faz - vê "o que devia estar escondido" dos outros e até de si mesmo - e, anulada a repressão, a distância entre observador e observados diminui (aliás, estes estatutos confundem-se) e abre-se espaço para a fantasia.

Proponho então alguns excertos de um poema que ilustra particularmente bem esta ideia da violação da intimidade. [21]


O Bispo de Beja

[…]

Alvitro que se faça exame patológico

na pessoa do chefe episcopal de Beja

acusado de ser o passivo anagógico

mais sórdido e mais vil de toda lusa Igreja.

Melhor do que ninguém um médico é que deve

constatar se é verdade o que diz o Ançã:

desnudará o bispo

e analisá-lo-á como a ciência prescreve

assim como se faz a qualquer barregã.

[...]

é, certo, um pederasta, um nojento devasso

que deve entrar na mesma história depravada

do Lacerda de Melo e o Marquês de Valada;

e, então, deve ir vaguear nas capitais, de noite,

e olvidando a mitra, o báculo, a exegese,

que busque o boulevard escuso onde se acoite;

frequente os urinóis e deixe a diocese.

[…]

Não quererá, o bispo! Eu sei que ele, no intuito

de vir justificar a sua sodomia

nos dirá que deboche e igreja têm há muito

estreita relação, certa sinonímia.

[…]

De súbito, de uma porta, aproximada ao leito,

abre-se e o sr. bispo entra, muito direito,

dengoso, feminil, com gestos de donzela.

[…]

Descerra-se outra vez a mesma porta, e então

aparece um campónio, um rijo rapagão,

tipo de herói pujil, alegre, bem nutrido.

O bispo vem tapar com um grosso tecido

o orifício em que espreito - o meu observatório.

Não importa. Se ele o é, também eu sou finório:

com um lápis desvio, artreiramente, o pano,

daí a pouco, e céus!, vejo isto: o pax-juliano,

[…]

Bamboleia o mitrado, o pódice, nas plenas

fúrias do membro, quase rábidas, coléricas,

num tormento febril de contorções obscenas,

num doido frenesi de luxúrias histéricas,

e tem, ao dar-se enfim a polução,

o delírio genésico dos monstros:

finca as unhas, feroz, no rapagão,

estrebucha, aumentando o junço das bodegas

espermático-fecais

e, expectora, depois, uns brados demoníacos,

como as bacantes gregas

nos seus dias orgíacos

ou como na sangueira as canibais.

[…]

E eu, que assim bispei este bispote, devo,

agora que lho mostro, em todo o seu relevo,

pedir, Sr. Pessoa, a você, a fineza,

de, a quem quiser, mostrar a verdade, a rudeza,

o realismo cru desta carta moral,

apresentando o bispo: Ecce homo…sexual…!

[…]

Repare-se que o narrador se mostra revoltado com as acções do bispo não só por este ser um homem da igreja - como tal devia ser celibatário (mas, esta privação forçada parece levar não à libertação mas à perversão, como diz o poema "deboche e igreja têm há muito estreita relação, certa sinonímia") - mas também porque considera as relações homossexuais como actos hediondos. No entanto, descreve toda a cena com tal entusiasmo e riqueza de pormenores que não nos ficam dúvidas quanto ao seu interesse e até agrado em observar as "devassidades" do bispo.

No fundo, condenando o que vê, o narrador é tão perverso ou mais que o bispo pois viola a intimidade do bispo e põe o leitor também na situação de observador secreto da cena.

Porque será que aqueles que dizem que determinadas coisas não se fazem nem à porta fechada querem sempre ir espreitar pelo buraco da fechadura para as ver?

Antes de passar à questão da privação e da perversidade vejamos ainda um poema do séc, XVII, resposta satírica à idealização do espírito feminino dos trovadores e dos petrarquistas. [22]

Que fio de ouro, que cabelo ondado,

piolhos não criou, lêndeas não teve?

que raio de olhos blasonar se atreve,

que não foi de remela mal tratado?



Que boca se acha ou que nariz presado

aonde monco ou escarro nunca esteve?

e de que cristal ou branca neve

não se viu seu besbelho visitado?



Que papo da mais bela galhardia,

que um dedo está do cu só dividido,

não mijou e regra tem todos os meses?



Pois se amor é tudo merda e porcaria,

e por este montouro andais perdido,

cago no amor e em vós trezentas vezes.

Neste poema "inclui-se" no corpo do protótipo da mulher ideal (cujos cabelos são "ondados fios d'ouro reluzente", os dentes são pérolas e os lábios são rubis, o riso "é brando e honesto" [23], etc.) todo o tipo de excreções ou excrementos corporais que, tal como tínhamos visto antes, são geralmente considerados obscenos. Curiosamente o poema em vez de ser um aviso para que se integre o físico, o corpo real na mulher de espírito e beleza superiores, é uma paródia da irrealidade de tais ideais e uma recusa de Eros.

Passemos então agora à análise da seguinte frase do dramaturgo brasileiro Nélson Rodrigues: "Todo o casto é um obsceno".

A primeira explicação para a frase é: porque a obscenidade está nos olhos de quem a vê, é um conceito muito subjectivo. Sobre isto Miller cita não só Theodore Schoeder - "a obscenidade não existe senão no espírito que a detesta e a lança sobre os outros", mas também a Epístola aos Romanos (XIV, 14) - "Eu sei, e convencido estou por Nosso Senhor Jesus Cristo, que não há nada de imundo em si mesmo, e que unicamente o que pensa que alguma coisa é imunda, só a tem imunda para si." [24].

Mas apesar de até a Bíblia incitar a uma integração saudável de vários aspectos do corpo que como acabámos de ver são habitualmente motivo de repugnância, sempre houve e há quem pretenda limitar a liberdade de expressão a quem "toque" nesses assuntos [25].

Ernest Jones tem uma excelente justificação para a censura que proclamam estes castos:

São pessoas secretamente atraídas pelas diversas tentações que as vinculam ao desvio da tentações que impregnam outras pessoas; efectivamente, não mais fazem do que defender-se elas próprias sob pretexto de defender os outros, dado que bem no fundo, têm medo da sua própria fraqueza. [26]

Nos poemas que se seguem, a componente obscena (de costumes sexuais estranhos à nossa cultura em Miscelânea de Garcia de Resende [27] e da Menstruação no poema de Liberto Cruz [28]) perde-se porque não está presente a ideia de transgressão sem a qual não pode haver obscenidade.


Miscelânea

86

Há outras tão desviadas,

muito perto destas tais,

que sendo mui bem casadas,

honradas e abastadas,

são a todos mui gerais:

lançam-se com quantos querem,

sem lhe os maridos tolherem

quantos querem escolher,

deixam-lhe tudo fazer,

sem lhe nada repreenderem.

[…]



88

Há também costumes tais

em Pegu, que homem competem,

a qual deles terá mais

em seus membros genitais

cascavéis onde os metem,

a sua carne cortando;

e por tempo se soldando

ficam dentro entremetidos:

dizem que são mais queridos

das fêmeas assim usando.

[…]


90

Diferentes maravilhas

de uso e variedade,

que as mães, em tenra idade,

em Meçua, cosem as filhas

por guardar virgindade.

Fica a carne tão soldada,

que, quando vem ser casada,

com se há-de romper,

sem doutra arte poder ser

a tal virgem violada.



Menstruação

Serena fonte, antiga,

onde tudo é suave.

E o líquido desliza

como tranquila ave.



Que espadas a cortaram,

que lábios a sorveram,

que dedos a tactearam

ou corpos repudiaram



não sei. Nem mesmo a fonte

quanto desejo exangue

provocou no viandante.



Agora é vermelha, quente

e suja, mas é a ponte

para que Amor rebente.

A segunda explicação para a frase de Nélson Rodriguez é: porque toda a gente critica mas todos vêem o Big Brother e se não suportam uma imagem tapam os olhos com as mãos mas ficam a vê-la por entre os dedos.

A opressão e a privação geram, muitas vezes, a perversão. O fruto proibido é consumido com culpa e junta ao prazer próprio da acção o prazer da transgressão.

Foi assim que ironicamente, a clandestinidade de muitas obras literárias levou a que estas se divulgassem muito mais. "A censura condena-se a si própria" [29] pois o que é deixado à imaginação tem mais poder do que o que é visto com naturalidade, e desta forma integrado sem diferenciação.

Sobre tais contradições morais avança Henry Miller com uma interessante perspectiva:

Creio, em certa medida, que não é moralidade aquilo a que chamamos moralidade - antes sendo uma forma de loucura funcionalmente adaptada às circunstâncias presentes. [30]

Exemplo dessa "moralidade do presente" é o facto do aumento do público interessado em artes ser proporcional ao aumento da repressão das obras ditas obscenas com excepção das obras de povos primitivos ou da Antiguidade às quais se aceitam as "obscenidades" sem qualquer indignação.

Ora porquê…? Só uma resposta se impõe: pelo simples facto de mesmo os mais néscios, os mais papalvos, reconhecerem no seu íntimo que outras épocas houve em que se tornou possível, com ou sem razão, a existência se outros costumes, de outros modelos morais. Contudo, quanto aos espíritos criadores do seu próprio tempo, da época enfim em que proliferam, eis que a liberdade de expressão é sempre tida como abuso ou desregramento moral. Dir-se-ia que o artista se deve conformar com a atitude corrente e frequentemente hipócrita da maioria. [31]

Na verdade, a censura falhará sempre porque onde houver civilização há obscenidade pois, como diz Havelock Ellis:


a obscenidade é um elemento permanente da vida social dos homens e corresponde a uma necessidade profunda do espírito humano, [...]Os adultos têm necessidade de contos de fadas, como alívio ou como refrigério frente à força opressiva das convenções. [32]

De facto, a linguagem "obscena" (que muitos criticam embora utilizem eufemismos hipócritas como "fogo" em vez de "foda-se") tem o seu lugar e não deve ser abusada para que não perca a sua enorme carga expressiva e catártica. O obsceno surte um determinado efeito que não pode ser suscitado de outras maneiras, tem uma energia própria.

Mas, como vimos, não é para "preservar" o obsceno que a censura actua geralmente. Muitos criticam o puritanismo dos censores e vêem na "obscenidade" uma violência positiva, uma manifestação da liberdade sexual e de expressão e dizem que realmente obscenas são a injustiça, a violência, a guerra que não são muitas vezes consideradas como tal:

Nada seria considerado como obsceno (pelo menos essa é a minha intuição) se os homens fossem até ao fundo dos seus mais íntimos desejos. O que o homem mais teme é ser confrontado com a manifestação, oral ou efectiva, do que, rechaçado (como hoje se diz), recusou viver, de tudo quanto estrangulou ou sufocou, manifestação de que o inconsciente não abdica. As qualidades sórdidas imputadas ao inimigo são sempre as que reconhecemos como nossas - e é por isso que nos erguemos para as massacrar, uma vez que só por essa projecção nos damos conta da sua enormidade e do seu horror. O homem tenta como num sonho matar o inimigo que no seu interior se oculta. [33]

Fica uma ideia das várias acepções do conceito obsceno e das diferentes atitudes face às ditas obscenidades.

Ainda sobre as palavras de Miller deixo este Soneto de Pedro José Constâncio [34]:


Cante a guerra quem for arrenegado,

que eu nem palavra gastarei com ela;

minha Musa será sem par canela

com um felpudo coninho abraseado:



Aqui descreverei como arreitado

num mar de bimbas navegando à vela

cheguei, propício o vento, à doce, àquela

enseada de Amor, rei coroado:



Direi também os beijos sussurrantes,

os intrincados nós das línguas ternas,

e o aturado fungar de dois amantes:



Estas glórias serão na fama eternas;

às minhas cinzas me farão descantes

fêmeas vindouras, alargando as pernas.



Sara Sá Leão

08 de Março de 2003

[Trabalho apresentado em Teoria da Literatura I – Junho de 2002]

NOTAS:



[1] O itálico é meu. Note-se que é o sentido 3 que a palavra tem hoje em dia. Dicionário de Latim-Português, Porto Editora, 1995.

[2] Henry Miller, Obscenidade e reflexão, Vega-Passagens, 1991, p. 25.

[3] Selecção, prefácio e notas de Natália Correia, Antígona - Frenesi, 1999.

[4] Poética, Imprensa Nacional, 1998, XIV, 74-75

[5] Cf. notas de Eudoro de Sousa ao Cap.XIV (Poética, Imprensa Nacional, pp.177 e 178)

[6] Poética, Cap.XIV-77

[7] Arte Poética, Editorial Inquérito, 2001, p.49 (vv.1 a 23).

[8] Ibid. p.75-77 (vv.179-188)

[9] Ibid., p.83 (vv.244-250)

[10] Ibid., p.95 (vv.333-334)

[11] Ibid, p.87 (vv.281-284 e nota de R. M. Rosado Fernandes)

[12] Ibid., p.99-101 (vv.369-373 e 385-386)

[13] Edmund Burke, A Philosophical Inquiry Into The Origin Of Our Ideas Of The Sublime And Beautiful With Several Other Addition, (1756), Parte 1, secção XIII.

[14] Ibid. Parte 1, secção XIV

[15] Ibid.

[16] Ibid. Parte 1, secção XV

[17] Ibid. Parte 1, secção VI

[18] Ibid. Parte 1, secção I

[19] Ibid. Parte 2, secção III

[20] Leonor Areal, Rui Zink (coord.), Pornex, & etc., 1986, pp.24-25.

[21] Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, "O Bispo de Beja" de Homem-Pessoa, pp.335-344.

[22] Ibid. p.181 - composição anónima extraída de um manuscrito da Biblioteca Nacional que colecciona poetas do séc.XVII (6269, pág.99v.).

[23] versos de sonetos de Camões

[24] Henry Miller, Obscenidade e reflexão, pp.29-30

[25] Note-se que, apesar da variedade de nomes que se dão ao que é considerado obsceno, (os tabus - pense-se, por exemplo, nos orgãos sexuais), que vão dos mais poéticos eufemismos aos mais fortes disfemismos passando por nomes científicos e, por vezes, até latinismos, nenhum destes registos é socialmente considerado correcto para a linguagem corrente levando sempre a um certo embaraço na escolha de palavras.

[26] Henry Miller, Op. Cit., p.31

[27] Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, pp.75-77

[28] Ibid. p.470

[29] Henry Miller, Op. Cit., p.33

[30] Ibid. p.49

[31] Ibid., pp.38-39

[32] Ibid., p.30

[33] Ibid., pp.42-43

[34] Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, p.267